
Trago em meu corpo, em minha escuta e no meu olhar, as marcas de uma infância vivida na zona rural de Minas Gerais, onde morei até os meus 10 anos. Essa vivência, tão enraizada na relação com a terra, com os ciclos da natureza, com o tempo mais lento e com o brincar livre, se tornou uma fonte inesgotável de inspiração para o meu fazer artístico.
Na zona rural, aprendi a brincar com o que havia disponível: folhas, galhos, pedras, vento, água, barro. Não havia brinquedos prontos, mas havia o mundo em estado bruto, oferecendo-se como território de invenção. O chão era palco, os riachos eram trilhas sonoras, os animais eram personagens de um teatro que eu mesma criava. Ali, compreendi que o brincar é encontro, é improviso, é diálogo com o ambiente. E é exatamente essa escuta sensível da matéria e dos elementos da natureza que levo para dentro das minhas criações cênicas.
Os espetáculos que dirijo para as infâncias carregam essa memória: o convite à experimentação com o corpo, com os sons, com os cheiros, com as texturas. As cenas não são apenas para serem assistidas, mas para serem sentidas, vividas e experienciadas. O espaço cênico se transforma em campo aberto, onde as crianças podem tocar, correr, inventar e criar junto. Assim como eu fazia quando criança, elas também são convidadas a brincar com o que está à sua volta, com o que é simples, com o que é essencial.
Minha infância na zona rural me ensinou que a natureza é parceira de criação. E hoje, ao pensar os espetáculos, eu abraço essa lembrança como potência artística: a terra vira cenário, o vento vira movimento, a água vira som, e o tempo desacelera para que a infância possa acontecer em toda a sua plenitude.
Minha pesquisa e meu fazer artístico são atravessados por um profundo respeito à potência da criança e à sua relação sensível com o mundo. Dentro desse universo, os elementos da natureza ocupam um lugar central: são matéria de jogo, de criação e de encontro.
A terra, a água, o ar, as pedras, os galhos, as folhas... cada um desses elementos é, para a criança, convite à experimentação, ao toque, ao movimento e à imaginação. No espaço cênico, eles deixam de ser apenas cenário ou ambientação: tornam-se parceiros de cena. São provocadores de dança, de gesto, de palavra, de silêncio.
Brincar com a natureza é também afirmar o direito das infâncias ao contato direto com o mundo natural. É um gesto político e poético que resiste à artificialização da experiência sensível. Ao trazer esses elementos para dentro da cena, abrimos caminhos para que as crianças-criadoras possam se mover, sentir, criar significados. A relação com a natureza na cena é uma continuidade daquilo que já fazem no cotidiano, mas agora com uma ampliação do olhar estético e poético.
Defendo que os espetáculos para as infâncias precisam abrir espaço para esse brincar com a natureza. Não como um recurso decorativo, mas como um campo de experimentação corporal, sonora e afetiva. O brincar com a terra que suja, com a água que escorre, com o vento que desloca os corpos e os objetos, com os galhos que desenham no ar... tudo isso vira dança, vira jogo teatral, vira experiência estética compartilhada.
"Ser mãe me colocou diante de um universo que antes eu observava de fora: o da experiência vivida da infância. A convivência diária com a minha filha me fez olhar com outros olhos para os ritmos, os desejos, as necessidades e as formas de expressão das crianças."

A criança em cena com os elementos da natureza nos lembra que o corpo que dança é um corpo-mundo, um corpo que se relaciona com o ambiente, com o chão, com o ar que respira, com a matéria que toca. É por isso que defendo, em meu trabalho, que a natureza esteja presente não só como tema, mas como linguagem, como parceira de jogo e criação.
Como pesquisadora do espaço cênico para as infâncias, movo meu saber artístico e pedagógico na defesa do sensível, do delicado, do poético e do sublime como territórios legítimos e necessários de criação cênica.
A infância nos ensina, todos os dias, que a potência não está apenas no estrondo, no excesso ou no impacto imediato. Há uma força profunda na delicadeza de um gesto, no silêncio que antecede a palavra, na pausa que convida o olhar a demorar. O sublime pode habitar um sopro de vento, um fio de luz atravessando o espaço, o som quase imperceptível de um corpo que desliza. Essas experiências, que muitas vezes passam despercebidas aos olhos apressados dos adultos, são para as crianças campos férteis de imaginação e descoberta.
Minha pesquisa cênica se dedica a construir espaços onde o sensível seja protagonista. Onde o tempo desacelere para que possamos ouvir as pequenas pulsações da cena. Onde a materialidade das coisas – um tecido que voa, uma sombra que se move, uma cor que muda – dialogue com os afetos e os sentidos das crianças. Nesse território, o olhar infantil não é um olhar que espera respostas prontas, mas um olhar que deseja experimentar o mundo de maneira ampliada, aberta, múltipla.
Ao escolher a via da delicadeza e do poético, afirmo que o espetáculo para as infâncias pode ser, também, um espaço de contemplação e de escuta. Um lugar onde as crianças possam reconhecer que seus próprios modos de perceber o mundo – cheios de nuance, de leveza e de intuição – têm valor estético, ético e político.
Assim, sigo: insistindo na delicadeza como linguagem, no sensível como método, no poético como caminho de encontro entre artistas e crianças. Porque acredito que, na experiência cênica, é possível oferecer às infâncias o direito ao espanto, à emoção, ao silêncio e à beleza.
Ser mãe me colocou diante de um universo que antes eu observava de fora: o da experiência vivida da infância. A convivência diária com a minha filha me fez olhar com outros olhos para os ritmos, os desejos, as necessidades e as formas de expressão das crianças. Passei a entender, de maneira mais visceral, que as infâncias não são etapas de espera para o futuro, mas um território pleno de saberes, potências e formas próprias de existir no mundo.
Esse encontro profundo com as infâncias me levou a mergulhar ainda mais na pesquisa sobre os processos de criação artística. Passei a buscar referenciais teóricos que me ajudassem a compreender o que já estava sendo vivido no corpo, na pele e na cena.
Entendi que é preciso uma escuta atenta e um olhar desarmado para acessar os mundos internos das crianças, aprendi que a infância é plural e que é necessário reconhecer as muitas infâncias existentes, com suas especificidades culturais, sociais e afetivas. Os espetáculos reforçaram em mim a importância do brincar como linguagem central da infância, como forma legítima de conhecimento e comunicação.
Hoje, minha criação artística parte desse lugar de respeito profundo pela criança como sujeito. Os espetáculos que dirijo são espaços de diálogo sensível com os pequenos espectadores, onde a estética não é simplificada, mas ampliada para abarcar as múltiplas formas de perceber, sentir e imaginar.
Minha filha segue sendo meu maior laboratório, minha referência viva e cotidiana. Ela me lembra, todos os dias, que a infância é um estado de presença e potência criadora. E é a partir desse lugar que sigo criando, pesquisando e me deixando afetar.
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